Uma das palavras que mais usamos em nosso vocabulário é a palavra humano/a e seus derivados como humanidade, humanismo. Referem-se à nossa espécie classificada em relação ao mundo animal distinguindo-nos das outras espécies. Muitas vezes também usamos essa palavra em sentido ético ou moral sempre numa linha positiva. Ao afirmar alguém como sendo boa pessoa dizemos ‘é muito humana’, ou ele/ela é de uma ‘humanidade comovedora’. Sem perceber damos a palavra humano e seus derivados um significado prioritariamente positivo, visto que criamos o seu sentido contrário quando afirmamos que alguém é desumano ou que uma situação de sofrimento ou injustiça é desumana. Identificamos o desumano como algo negativo, cruel, animalesco que negaria até a nossa humanidade. É como se dividíssemos nossas ações e até as pessoas em duas partes: uma humana e outra desumana ou animal. Essa separação tem sérias consequências na compreensão de nós mesmas/os porque vai criando oposições e separações dentro de nós. Vai também provocando no nível de nossas crenças religiosas o surgimento de entidades malignas e benignas como se separássemos o joio do trigo em processo de crescimento ou como se fôssemos influenciadas em nossos comportamentos por forças boas ou más totalmente superiores a nós.
Gostaria de propor que pensássemos no humano que somos, primeiro como originários do humus, da terra, ou seja como frutos da longa e misturada evolução da vida em nosso planeta. É só em segundo lugar que podemos dar uma conotação ética ao humano, porém para além do dualismo ou de uma visão só de bondade ou só de maldade independentes que se opõem e se excluem.
Tudo o que fazemos é humano. Tanto os atos de amor quanto os atos de crueldade são humanos porque o humus que nos constitui contém em si mesmo a mistura de muitos elementos e emoções. E todos os elementos se necessitam para formar o que somos e para comandar a nossa história.
É muito importante darmos esse passo de reflexão e compreensão para precisar o significado das palavras e não corrermos o risco de nos enganarmos em relação a nós mesmos e a nossos semelhantes.
É nessa linha que gostaria de lembrar alguns aspectos do mito da criação dos seres humanos nos primeiros capítulos do livro do Gênesis. Lá se diz que Deus, ou melhor a Vida no seu Mistério, o ‘tudo o que existe’ ou Yaweh, mistura terra com sopro vital e dela nascem os seres humanos. E esses seres à princípio ou quando são bebês não distinguem o bem do mal. Vivem sem autonomia sendo nutridos como num jardim sem grandes conflitos. E quando crescem, ou seja, quando a consciência evolui neles são capazes de mentir, matar uns aos outros, roubar, ferir e agir de forma egoísta. Porém não deixam de ser seres humanos, não deixam de viver a mistura de bem e mal, de construção e destruição que existe neles.
Quando separamos a bondade da maldade não estamos lidando com seres humanos, mas com seres imaginários, com uma invenção fantástica dos seres humanos, invenção criada por nós mesmos. Se observarmos bem a nossa vida podemos perceber que muitas coisas boas que fazemos nascem de coisas ruins que observamos. É porque Jesus via a fome das pessoas, portanto algo ruim que propõe a divisão do pão. É porque via muitas pessoas doentes que as cura. É porque os escravos negros não suportavam mais a opressão em que viviam que fugiram e formaram quilombos de resistência. É porque as mulheres não aguentaram mais serem excluídas de direitos básicos que se rebelam e criam os movimentos feministas.
Podemos de fato distinguir as coisas em nós, porém não as separar, porque se assim fizermos nunca daremos conta de percebermos a grandeza e a beleza de nossas vidas e nem a complexidade das coisas que nos cercam. Distinguir é entender a mistura das coisas. Por exemplo sei que tomo água, mas quando vou analisar do que é feita a água me dizem que é de partículas de oxigênio e partículas de hidrogênio. Se separo os dois não é mais água. Se distingo entendo e ao mesmo tempo sigo bebendo água.
Acolher a mistura que somos também nos mostra o quanto a negação de alguns excessos ajuda a vida. Por exemplo a negação do acúmulo de bens, a negação do excesso de drogas, a negação das armas de guerra ajuda a uma vida mais respeitosa de uns e outros. O mais importante é que a cada momento somos convidadas/os a refletir, a criar métodos de ação em vista do bem comum acolhendo a complexidade de nosso ser.
Entender de novo quem somos nós seres humanos torna-se uma necessidade nos processos de formação do movimento popular e de educação de nós mesmos. Torna-se também imprescindível na compreensão da tradição cristã ela também responsável em grande parte pela produção de oposições ou dualismos dentro de nós.
Entender quem somos, ajuda-nos a entender que aquilo que chamamos realidade somos nós mesmos interagindo de muitas maneiras uns com os outros, com a natureza e conosco mesmos/as. O mundo somos nós, o amor e a justiça são de nossas relações, são nós.
Pensar os seres humanos que somos é um constante desafio e precisa ser retomado em todos os tempos e lugares para que analisemos de forma mais completa a nós mesmos e as situações em que vivemos. Não basta apontar o mal ou denunciar a palha, como diz o Evangelho, nos olhos dos outros. É preciso reconhecer aquela que está também em nosso olho, em nosso coração sempre pronto para julgar os outros e desculpar-se a si mesmo.
Ivone Gebara
01 de outubro de 2020.